... a ciência social como uma ciência humana, demasiadamente humana
Grupo de Estudos que vem sendo desenvolvido no Centro Universitário Curitiba, sob gestão do Núcleo de Pesquisa e Extensão – NPEA.

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Acadêmicos:

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Brevíssimas reflexões sobre Nietzsche em "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral"




Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão que ainda hoje anima os mais calorosos debates filosóficos, direta e indiretamente.

Por quase toda a área do conhecimento em que se produzir pensamento, de algum modo, por alguma via faz-se referência a este autor, seja por uma máxima por ele enunciada, seja pelo estudo mais detido de uma de suas obras. Para concordar ou discordar, o debate se anima na radicalidade que o autor nos põe ante aqueles valores mais naturalizados em nossa mentalidade.

Enfim, a despeito da popularidade do pensador e da sua aceitação (para o bem ou para o mal, para construir ou destruir) mais do que estabelecida no contexto do que se poderia chamar de pós-modernidade, em profícua influência em notáveis pensadores e intelectuais do século XX, a exemplo de Sigmund Freud e de Michel Foucault, só para citar alguns exemplos; cada texto de Nietzsche, dos curtos aos longos, permitem a imersão em perspicazes percepções da natureza humana, sua nobreza e mesquinhez, sua condição.

Porém, tudo isto ainda diz pouco e, portanto, discorre-se especificamente sobre o texto "Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral" de modo a fornecer maior concretude ao que se argumentou acima.

De modo muito geral, a base do texto de Nietzsche consiste na argumentação em torno da relação que se estabelece entre o impulso à verdade enquanto decorrência do contrato social firmado entre os homens (naquele entendimento tradicional das filosofias contratualistas). Se no estado de natureza se tinha o disfarce, o "camuflar-se", como principal modo de conservação e sobrevivência, o que levou o intelecto e a produção de conhecimento à crescente complexidade deste, é no momento em que os homens se organizam em sociedades pautadas por regras e Estado que se teria este apego maior ao critério da verdade enquanto condição mesma desta situação de sociedade (e mais, somente racional viabilizado nesta estrutura).

Aí está. O enganar nasce como estratégia intelectual e legítima de sobrevivência dos homens mais fracos fisicamente ante a dominação dos outros que lhe sobrepujariam recursos e possibilidades de continuidade do impulso de vida se não fossem despistados por espertas estratégias dos que pensam. Representar, mascarar e dissimular para, criando estrategemas, livrar-se das dominações. Em vista deste primeiro cenário, o de natureza, o apego a verdade seria uma aberração, uma irracionalidade, pode-se dizer, um suicídio.

Pois bem. Complexificando-se uma sociedade, na especialização da linguagem, espaço ganham os contrastes e, assim, intensificam-se as distinções entre verdade e mentira e agrega-se a isto uma série de julgamentos morais valorativos conferindo determinadas avaliações às condutas, pois, repercutindo socialmente na aprovação ou reprovação das condutas qualificadas como existentes ou sob a égida da verdade, ou sob o pálio da mentira.

Assim, a noção de verdade, para Nietzsche, nascida no contexto do contrato social, representa um consenso que os homens trazem em si justamente na medida em que representa uma ordem uniforme e válida para a mensuração das coisas, comunicação e demais trocar sociais, pode-se interpretar. Valer-se de designações válidas, distorcendo-lhes os efeitos uniformes seria ingressar no campo da mentira, fazendo deixar de corresponder a afirmação lingüística à realidade, ao objeto a qual se refere, no que as trocas arbitrárias de significados são o principal meio empreendido para a mentira, desvirtuando as convenções e assim ludibriando os interlocutores.

Problematizando as relações entre língua e verdade, Nietzsche detecta a arbitrariedade na fixação de sentidos ligados aos estímulos sonoros e visuais das palavras, de modo que as "transposições arbitrárias" apresentam-se como a justificativa tanto para a escolha dos sentidos em uma língua quanto da diversidade de línguas, que revelam não haver uma identidade essencial que liga os sons da fala às coisas que representa.

Este sentido é importantíssimo na interpretação do texto, uma vez que desnaturaliza aquilo que se teria por natural, como ocorre com determinada palavra da língua mãe referindo-se a determinado objeto, relação a qual, se não passar por avaliação crítica, pode ser tida como única, absoluta, natural, desde sempre existente e assim por diante, ou seja, passa desapercebido os veios culturais ligados aos símbolos de determinada sociedade.

Esta discussão posta pelo autor culmina com uma possível conceituação da verdade que contribui para um melhor delineamento do raciocínio do autor no texto, neste entalhe de diferenciações e identificações progressivas a que se refere o autor na própria gênese de quaisquer conhecimentos. Leia-se, sobre a verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornam gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moeda. (p. 48).

Em uma primeira leitura, aos mais apegados ao significado da verdade (ou aos mais apegados ao sentido da mentira, enfim) poderia se ter a impressão, pois, de completa arbitrariedade que tudo legitimaria. Afinal, no dizer do filósofo alemão não haveria um núcleo rígido que ligasse a verdade às coisas a não ser o consenso entre os homens e o uso efetivo das formas acordadas.

Assim sendo, a noção de verdade seria um esquecimento: esquecimento de que entre a linguagem e a coisa há a metáfora. Sumindo a metáfora da percepção imediata, alcança-se a crença de se estar na posse da verdade.

Por fim, Nietzsche considera o homem intuitivo, e não somente o homem intelectivo, concluindo que cada um, na sua maneira de conhecer o mundo, seja pela abstração e conceitualização, seja pelo aspecto artístico, por meios diferentes ambos tentam dominar a vida, eis a função precípua do conhecimento. Contudo, ainda em novo contexto mesmo amparado por regras de conduta que visam à estabilização social, ainda ambos os homens, intuitivo e racional, apresentam-se diretamente implicados pelo sofrimento.

Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já em suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais freqüência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade e ilusões, proteção contra as tentações de fascinação desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com algum digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela (p. 52).

Do abordado neste brevíssimo resumo comentado da obra do filósofo alemão, pode-se perceber que estrutura uma teoria, ainda que não sistematizada, das origens do conhecimento, quanto mais esta subordinada à ordenação social, por um lado, quando da desorganização desta, em que a atitude de certa deslealdade não só é necessária como legítima e, ainda, quando esta sociedade em organização por meio das formas estatais, apresenta-se, pois, necessária a elevação da noção de verdade enquanto metáforas e acordos para se criarem parâmetros de ação comum entre os homens, bem como repressão de arbítrios desmedidos, o que resulta também em uma maior equiparação de forças eis que não se está submetido apenas ao poder físico fornecido pelo corpo de cada um.


Referência:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).


sábado, 7 de novembro de 2009

SUBJETIVIDADE NA CIÊNCIA E SEUS REFLEXOS NO DIREITO III: GASTON BACHELARD E O PROGRESSO DIALÉTICO DOS CONCEITOS

O estudo do saber nas ciências, conhecimentos racionais sobre determinadas disciplinas, frequentemente vêm sendo feito de modo dualista: de um lado pelos filósofos apresentando princípios gerais e, de outro pelos cientistas demonstrando resultados particulares. O objeto científico clama, contudo, por diversos e sucessivos métodos de abordagem, aplicando simultaneamente condições objetivas e subjetivas, associando criatividade com experiência.

Esse desenvolvimento dialético é defendido pelo filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) em sua obra Filosofia do Não (1940), na qual teoriza por uma filosofia aberta do conhecimento científico, o chamado “racionalismo aplicado”, em que se procura no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores; novas experiências negando as antigas, propiciando a superação de princípios.

Essa busca dialética pela retificação de conceitos empregados nas ciências em seus processos de cognição dos objetos é uma constante também na Jurídica, especialmente quanto ao novos direitos, com destaque ao meio ambiente. Com efeito, desde a Revolução Industrial, no contexto da modernidade, discutem-se e se aperfeiçoam normas técnico-científicas e jurídicas, que expressam conceitos e viabilidades de fatores decisivos para a sociedade como produtividade, eficiência, empregabilidade, respeito às condições de trabalho e de saúde e, recentemente, com maior ênfase, melhoria da qualidade de vida que abrange a preocupação com a natureza e a sustentabilidade.

O incentivo de Bachelard, ao convidar o espírito cientifico do leitor a aproximar sujeito e objeto, procurando variações e aprimoramento de pensamento, unindo criatividade e experiência, vem justamente ao encontro das necessidades atuais da sociedade contemporânea em questões sociais e ambientais. Essa mudança de paradigma faz-se importante na formação acadêmica e profissional, uma vez que propicia um novo e harmonioso enfoque sobre a ciência em geral, especialmente a Jurídica.

Germene Mallmann

sábado, 18 de julho de 2009

O papel da ciência nas regras de conduta: uma leitura do texto “Ciência e valores humanos” de Jacob Bronowski


Texto sobre a relatoria de 03/07/2009

Jacob Bronowski aborda neste livro (1979) o descompasso entre o desenvolvimento da ciência e as questões éticas decorrentes das aplicações dela. Embora seja possível observar que as ciências passaram por um grande avanço nos últimos séculos, este avanço foi essencialmente técnico. O apego á técnica, sustentado pela ingênua idéia moderna de que o desenvolvimento da ciência implicaria o desenvolvimento da civilização, resultou na catástrofe atômica de 1945. Para Bronowski esse fato representou, de um lado, a extensa escala de indiferença com o homem a que a humanidade chegou e, de outro, um abrupto despertar da consciência dessa indiferença. É nesse sentido que sustenta que em um mundo feito pela técnica científica “qualquer homem que abdique do seu interesse pela ciência caminha de olhos abertos para a escravatura” (1979, p. 12). Essa discussão continua extremamente atual. Uma nova forma de tecnologia, talvez ainda não previsível na segunda metade da década de 1950, pode causar mais controvérsias que a pesquisa nuclear. É a nanotecnologia, que em discursos de cientistas já foi associada a possíveis usos militares.

A partir da consideração fundamental de que ninguém pode se exonerar da responsabilidade, o autor desenvolve neste livro a tese de que a civilização forma, com suas partes, um todo e pretende expor os laços que animam e tornam coerente uma sociedade. Tem o objetivo, com isso, de apontar para a necessidade de se reposicionar a ciência frente às regras de conduta. Como um grupo de estudos em uma faculdade de Direito, avaliar essa proposta do autor deve ser, para nós, de grande interesse. A nós, leitores, caberá, portanto, sustentar um distanciamento crítico frente a ela, buscando verificar a todo tempo se o autor desenvolve sua exposição com foco nela e se ele consegue atingir sua finalidade. A abordagem do tema é feita em três etapas: uma aproximação da “natureza da atividade científica” (1979, p. 12); uma leitura da natureza da verdade na ciência e os reflexos dessa posição e, por fim, uma abordagem “[d]as condições para o sucesso da ciência e os valores que a levam para uma congruência coma dignidade humana” (1979, p.12).

No capítulo que trata do espírito criador e da natureza da atividade científica Bronowski propõe uma definição de ciência que ultrapassa qualquer noção convencional do termo. Ele a define como “a organização do nosso conhecimento de tal modo que domine mais o potencial oculto da natureza” (1979, p. 13). Essa noção de ciência abarca não apenas o conhecimento puro produzido por seus métodos e técnicas específicos, mas também o uso que se faz desse conhecimento, de modo que fazer ciência é conhecer e também exercer controle sobre os resultados do conhecimento e sobre os meios em que este penetra. Com base nisso, o autor é contundente ao afirmar que não deve ser traçada distinção entre conhecimento puro e conhecimento aplicado, porque o trabalho do cientista é também animado por interesses de sua época, além de seus interesses individuais. Sobre o domínio da natureza pelo homem, Bronowski salienta que foi o conhecimento, e não a força, que àquele proporcionou essa condição.

Posta a definição de ciência que Bronowski adota, segue o autor na tentativa de descrever a natureza dessa atividade. Para ele a ciência é trabalho imaginativo e criativo. O autor refuta qualquer comparação do conhecimento científico com uma coleção de fatos e do parágrafo 5º até o 9º explica o que isso significa. A atividade científica não é pura atividade neutra, fotográfica. Ela tem essencialmente caráter imaginativo. Bronowski sustenta essa idéia em exemplos de descobertas científicas que foram movidas por suposições imaginárias dos cientistas que as fizeram. Disso, posso afirmar que o simples fato de o cientista trabalhar com a confirmação e a refutação de hipóteses já evidencia o argumento. É sabido que hipóteses são pensadas a partir da intuição do pesquisador, que em uma etapa posterior as submete à prova. Ora, e o que são então hipóteses se não algo que se desprende do imaginário dele?

Bronowski afirma que o ato de criação científica compreende um ato de fusão, de aproximação, de busca de alguma unidade onde existem semelhanças ocultas. Esse espaço, onde as semelhanças estão, é a variedade da natureza e a variedade da experiência individual. A ciência não é, portanto, um saber puramente descritivo da realidade. Caso o fosse, suas teorias só poderiam ser consideradas verdadeiras ou falsas uma única vez e refutadas ou aceitas para sempre. Assim, a ciência “não é uma cópia da natureza, mas uma recriação da mesma” (1979, p. 26), o que justifica a impossibilidade de se separar saber teórico de saber prático. Inclusive Popper (em breve colocarei as referências com precisão) demonstra em termos lógicos, e julgo sua hipótese plausível, que o conhecimento descritivo não é exatamente descritivo. Tudo o que ele pode fazer é confirmar pelo exemplo e pela experiência uma estrutura de ocorrência de fatos imaginada e compreendida de uma forma determinada por um cientista. Essa estrutura de ocorrência manifesta muito mais o raciocínio do que a descoberta de uma ordenação verdadeira da natureza. Bronowski parece ciente disso ao afirmar que todo conhecimento é aproximado e não corresponde a uma plena descrição dos fenômenos sobre os quais versa.

Em síntese, a atividade científica é criativa, porquanto sua ordem é descoberta, criada a partir de um jogo de conjecturas, e também imaginativa, por fazer essas conjecturas a partir da busca de semelhanças ocultas entre as coisas.

Cumprindo o plano anunciado, Bronowski segue sua exposição no segundo capítulo buscando elucidar sua afirmação de que a civilização cientificista é movida por um hábito de verdade. Define-o como “o hábito da experiência e a correção do conceito pelas suas conseqüências” (1979, p. 52). Essa tendência à experiência como forma de se atingir alguma verdade é algo característico da civilização moderna ocidental, e não encontra correspondência necessária em todos os povos. Cabe, portanto, elucidar a forma como o autor entende a relação do ocidente com o que este chama de “verdade”.

O autor parte da constatação de que a ciência e arte, enquanto atos de criação, estão sempre sujeitos a revisões, releituras. Esses atos de posterior apreciação são novos atos de criação. A interpretação, portanto, sempre “reativa o ato de criação” (1979, p. 33). Porém a criação científica não é idêntica à artística. O cientista trabalha sobre uma perspectiva de criação sempre mais limitada. Sabendo que o cientista e o artista de maneiras distintas pretendem atingir suas particulares perspectivas do que consideram verdadeiro, é necessário aclarar este termo. Ora, se cientista e artista se pautam pela busca de uma verdade, é evidente a força propulsora dela e do que eles entendem que ela seja.

Jacob Bronowski inicia por afirmar que só percebemos que algo existe através de atos de reconhecimento. A percepção transcende qualquer esquema lógico-dedutivo, vai além, também, da lógica indutiva e envolve nelas a marca decisiva da intuição. O que cada indivíduo considera como real não é a manifestação auto-evidente da verdade, mas é, fundamentalmente, a construção da verdade através de um processo de reconhecimento e associação. Se a percepção e, consequentemente, a investigação científica pudessem prescindir dos atos de reconhecimento, de modo que o cientista pudesse ser mero observador neutro dos fatos, é possível que as descobertas científicas se reduzissem a pura catalogação de acontecimentos, porquanto o jogo criativo de associações de semelhanças ocultas científico seria negado.

Bronowski descreve, assim, três etapas para as descobertas: a existência dos dados separados dos sentidos, o jogo das associações daqueles por intermédio destes e a atribuição de símbolos ou nomes à conjectura resultante. Essa terceira etapa é a que permite a abstração, trabalhar com o conceito quando a experiência que ele manifesta não ocorre. A veracidade dos resultados dessas etapas de conhecimento é extraída pela experiência posterior cotejada com a conjectura final. Se os dois não corresponderem é porque a segunda fase falhou. O problema, portanto, não está nos dados, mas nas associações criadas entre eles. Não apenas a lógica dedutiva é utilizada pela ciência. A experiência tem papel determinante também. Isso porque basta um equívoco em uma qualquer premissa para que a construção científica desmorone.

Disso, preliminarmente, é possível excluir de qualquer noção de verdade a evidência por ela mesma e a validade universal dos conceitos. Estes, conforma as três fases mencionadas, são sempre construídos com base na experiência e representam a etapa final do trabalho. A auto-evidência não é possível porque tudo o que julgamos evidente é uma conjugação dos dados da experiência com nossa interpretação deles, que é sempre socioconstruída. Esse ponto de vista pode ser expandido pela leitura que Bronowski faz dos positivistas lógicos. Estes nutrem profunda desconfiança pelos conceitos e pelos valores, o que se deve à grande tendência de universalização de ambos. Embora a ciência moderna tenha partido de sistemas dedutivos (e a ética medieval de algo parecido), não pode a eles ser reduzida. A concepção de verdade que impulsionou a ciência partiu da crença de que aquela poderia ser alcançada por esta, por métodos precisos e rigorosos. Isso, conforme exposto, não é possível. Toda verdade é apenas aproximada porque toda certeza nunca é plenamente deduzida. É, acima de tudo, criada.

A imutabilidade aparente dos conceitos éticos frente à mutabilidade dos conceitos científicos, confrontados inevitavelmente com a experiência, conduzem a uma separação entre ambos. Eis um ponto de ruptura da responsabilidade moral do cientista pelo conhecimento científico. Eis uma justificativa para ele se sentir desobrigado. Bronowski, explicitamente contrário a isso, propugna implicitamente a conjunção entre ciência e ética, conforme é possível extrair do seguinte trecho:

Tudo é simples, uma vez que se veja que a ciência é igualmente um sistema de conceitos: compete à experiência pesquisar e corrigir o conceito. A pesquisa é: O conceito funcionará? dará uma unidade natural à experiência dos homens? o conceito torna a vida ordenada, não por decreto, mas de fato? (1979, p. 47- 48)

Se é necessário avaliar a capacidade do conceito de tornar a vida ordenada, uma vez que se perceba que a sua mera imposição nada significa, e uma vez que ele realmente se remeta à ordenação da vida, é necessária a emergência de um fundo ético que o oriente. Disso decorre a impossibilidade sustentada desde o início do texto de se separar conhecimento puro de suas aplicações práticas. Isso é que, no fundo, impede a separação entre técnica e ética. Esse resultado tem o mesmo sentido do texto de Popper que estudamos em nossa reunião passada (1996), e talvez vá além dele: Popper sustentava que o cientista não pode desviar-se da responsabilidade moral pelos resultados de sua pesquisa porque todo conhecimento puro pode se tornar aplicado (1996, p. 153). Bronowski sustenta que o conceito de ciência abrange não apenas o conhecimento puro, visto que este sempre se construiu com base em inclinações de seu tempo e sempre versou sobre o domínio da natureza.

No terceiro capítulo Bronowksi parte de suas conclusões nos capítulos anteriores para examinar os valores que norteiam a ciência e que orientam a civilização ocidental. Da leitura do capítulo 2, como demonstrei, o autor não acredita que conceitos (logo, também, valores) sejam inatos. Sua análise no terceiro capítulo é iniciada através da observação de que Bronowski não alimenta os típicos receios dos que querem crer na essência dos conceitos e dos valores (ou, nas precisas categorias de Kant, dos que acreditam que conceitos e valores são juízos analíticos a priori). Esses receios podem ser manifestar como, por exemplo, no medo de que, uma vez aceito que todos valores são criação, e não absolutos, se descumpridos não implicariam sanção se não houvesse algum mecanismo sancionatório social. Assim, teme-se que pessoas que detenham poder e conhecimento cheguem á conclusão de que tudo é permitido. Esse temor se expande também ara as ciências sociais.

Brownoski refuta esse tipo de receio por acreditar que ele não sobrevive a um exame histórico: “Duvido que esta sombria opinião resista à luz da História” (1979, p. 60). Não vejo muita força nos argumentos que ele utiliza para sustentar essa opinião. O cerne de sua opinião acaba sustentado, nas palavras de Robert Dahl, pela convicção de que a posição daqueles receosos “contém o toque de cinismo vivido, para indivíduos possuidores de fortes traços de idealismo frustrado” (DAHL, 1970, p. 90).

O autor polaco afirma, em estrita correspondência como a tese do livro analisado, que há um nexo social estabelecido pelo cumprimento de regras aceitas socialmente. Se a maioria das pessoas as desrespeitassem, como temem os receosos, nenhuma sociedade se sustentaria. Assim, uma sociedade sempre envolve, no fundo, uma tensão entre os deveres dos homens (que permitem que laços sociais permaneçam) e a liberdade individual. É nessa tensão, e não antes dela, que os valores surgem, e é ela que os torna “profundos e difíceis” (BRONOWSKI, 1979, p. 61). Para ele, o princípio que forma um elo social verdadeiro é o princípio da autenticidade, que corresponde não ao fato de sabermos se outro indivíduo age de forma honesta ou leal, mas ao fato de ser isso o que esperamos das ações dele. Na comunidade científica esse princípio é fundamental, e a partir dele Bronowski elaborou um axioma social: “DEVEMOS atuar de tal modo que aquilo que É verdadeiro possa ser verificado como verdadeiro” (1979, p. 64). Só há verdade possível de ser enunciada na extensão de sua possibilidade de verificação.

A partir disso, o autor busca identificar na comunidade científica o que confere a ela tanta força, o que a mantém tão coesa e o que a fez atravessar séculos intacta. Isso se deve, para ele, aos valores das ciências, construídos nas práticas delas, e não na moral individual de seus membros. Como já visto, a ciência cria conceitos explorando fatos. Essa tarefa criativa exige independência de pensamento, transparência para a análise dos resultados e a liberdade para se discordar de um posto de vista sedimentado. Disso que “a discordância [...] é a marca de liberdade, tal como a originalidade é a marca da independência de espírito” (1979, p. 67). Assim, a comunidade científica tem que assegurar “investigação livre, pensamento livre, linguagem livre, tolerância (1979, p. 67), do que se percebe que essa comunidade tem que ser democrática. A ciência, de tudo o que até agora foi exposto, não é neutra. Ela assume uma posição ética que é sua condição de existência. O que fez com a sociedade científica tenha permanecido por tanto tempo, e hoje com mais força, é a flexibilidade que seus valores a propiciam. A tarefa dela não se esgota na busca do conhecimento. Uma vez que a ciência, conforme a definição de Bronowski no primeiro capítulo, não se esgota no conhecimento, mas abrange também os usos dele, essa comunidade tem que se fundar em um compromisso entre os homens. “Deve encorajar o cientista individual a ser independente e o corpo de cientistas a ser tolerante (1979, p. 74).

Esse compromisso da sociedade de cientistas acaba a tornando até mais importante que suas descobertas. Disso, o autor conclui que não é a sociedade científica a culpada pela catástrofe nuclear; os valores daquela são opostos a esta. “A verdade é daqueles que apelam para outros valores, para além daqueles valores humanos imaginativo que a ciência desenvolveu” (1979, p. 78). Bronowski propugna a incorporação dos valores da comunidade científica pela sociedade em geral. ‘A vergonha é nossa, se não fazemos com que a ciência faça parte do nosso mundo, tanto intelectual como fisicamente, de modo que possamos, finalmente, atentar nestas metades do mundo segundo os mesmos valores (1979, p. 78-79). Assim, o autor atinge os objetivos de sua tese central na página 12: demonstra o vínculo que une a sociedade e mostra o papel da ciência “nas regras de conduta que têm ainda de ser aperfeiçoadas” (1979, p. 12).

REFERÊNCIAS

BRONOWSKI, Jacob. As Origens do Conhecimento e da Imaginação. Tradução de Maria Julieta de A. C. P. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.

DAHL, Robert. Uma crítica ao modelo de alite dirigente. In:______. Sociologia política. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.


Vìdeo do Bronowski no YouTube:


domingo, 21 de junho de 2009

A responsabilidade moral do cientista e do jurista: comentários de um estudante de Direito à comunicação de Popper

Popper, nesta breve comunicação (1996), revela considerar a discussão da responsabilidade moral do cientista como apenas uma forma mais elegante e suave de se tratar de ameaças nucleares e biológicas. Ressalta que a importância da discussão deve-se à tendência da época [1968] e ainda atual, posso dizer sem vacilar, de todo conhecimento científico e acadêmico puro tornar-se prático em potencial.

Através de uma revisão do juramento de Hipócrates – surgido na Grécia antiga e direcionado aos futuros médicos da época –, propõe uma reformulação, que não pretende impor, mas tornar aberta na medida em que é posta em favor do diálogo aberto com estudantes que venham a exercer futuramente atividades que reivindiquem responsabilidade moral sobre os resultados. O juramento reformulado de Popper é composto pelos três aspectos descritos a seguir. O primeiro refere-se à responsabilidade moral do estudante comprometido com o crescimento do conhecimento, que implica não tratar com excessiva benevolência os erros cometidos, mesmo sabendo que todos correm o risco de errar. Isso exige a complexa tarefa de se pautar o trabalho em rigorosos patamares, sempre cuidando para elevá-los, e, ao mesmo tempo, manter-se ciente das limitações de nosso conhecimento e de nossas capacidades. O segundo aspecto refere-se ao reconhecimento, pelo aluno, de que ele se insere em uma tradição e em uma comunidade científico-acadêmica que exige lealdade com os predecessores e com os colegas, porém, concomitantemente, reflexão crítica sobre esse espaço e sobre esses sujeitos – grupo do qual o estudante não pode se subtrair. A terceira característica aponta para a necessidade de se manifestar uma relação de lealdade do conhecimento desenvolvido com seus potenciais afetados, o que implica lealdade com toda a humanidade, devendo o cientista tentar prever maneiras de evitar usos indesejados desse saber.

Vejo este último ponto, em especial, como de extrema relevância para a discussão jurídica no Brasil hoje. Em nossa faculdade, até onde tenho notícias, preponderam programas de treinamento e práticas pedagógicas que consistem em pura repetição escolástica de textos legais, doutrinários e jurisprudenciais. Os poucos espaços de reflexão acabam mitigados por uma linguagem de acesso restrito, recheada de preciosismos, e costumeiramente se fecham no que Foucault chamava de interdição do “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala” (FOUCAULT, 2006, p. 9). A produção doutrinária é, em geral, extremamente volúvel a modismos e se torna altamente contingente. Encontrar construções intelectuais com amparo teórico sólido é raridade, o que pode apontar para a completa prevalência de um formação de cunho profissionalizante – que, definitivamente, não dá conta dessa meta – em detrimento da compreensão do que é o jurídico, o que acaba por reduzi-lo a puro conservadorismo.

A terceira proposta de Popper, frente ao discurso fortemente desamparado e de difícil acesso de nossa realidade jurídica, invoca a necessidade de se abrir a compreensão do fenômeno do Direito como discurso aberto, construído para e por seus destinatários. É esse o dever de lealdade mínimo que o jurista deve estabelecer com seu objeto de estudo. E para instrumentalizá-lo, vejo como pertinente uma ponderação de Barthes, segundo a qual o favorecimento da inteligibilidade do discurso não pode resultar na eliminação de sua metanarrativa (BARTHES, 1987, p. 177). É esta, precisamente, uma das grandes responsáveis pelo potencial de se exercer algum controle sobre os resultados do conhecimento produzido, por o circunscrever a limites e circunstâncias próximos dos em que surgiu. No entanto, quantas vezes nós, estudantes de Direito, já não assistimos professores reduzirem – sob justificativa de recurso didático – discussões principiológicas a mera enumeração enciclopédica de princípios? Ou ainda transformarem teorias e fenômenos complexos em frases de efeito ou simples proposições de senso comum? A ausência da metanarrativa é evidente, e os espaços de exercício de poder desvelam-se insensivelmente. Ao tratar da responsabilidade do cientista social, Popper ressalta como uma sua obrigação moral buscar meios de controle de instrumentos de poder, e não apenas tornar estes evidentes. Esse alarde, evidentemente, se torna ainda mais gritante para o Direito enquanto (pretensa) ciência social aplicada.

Popper assume a dificuldade de se avançar no tema, por isso salienta que o fundamental é manter no cientista e, agora devo também dizer, no jurista a consciência de sua responsabilidade. É nesse sentido que considera irresponsável a titulação de doutores com formação puramente técnica, salientando que o papel do professor é de, também, inserir o aluno na tradição de conhecimento em que este passa a ser um elo, demonstrando dela não apenas os caminhos, mas também as asperezas.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. El discurso de la historia. In:______. El susurro del lenguage: más allá de la palabra y de la escritura. Barcelona: Paidós, 1987.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 . São Paulo: Edições Loyola, 2006. 14ª Ed.

POPPER. Karl R. A Responsabilidade Moral do Cientista. In:______. O Mito do Contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Organização: M. A. Notturno. Tradução de Paula Taipes. Lisboa: Edições 70, 1996. p.153-161.

sábado, 20 de junho de 2009

Reunião de 20/06/2009 – Karl Popper


Estimados!

Que beleza de reunião, foi uma alegria conhecê-los, e discutir convosco é um privilégio.

Para dar continuidade aos posts referentes às reuniões, em conformidade ao que acordamos ontem pela manhã, acredito que possamos seguir um esquema mais flexível – mas não menos rigoroso do que os fichamentos prescritos pela metodologia científica – de estabelecer uma continuidade da discussão dos textos e novas referências ou idéias surgidas após a reunião, aqui em nosso espaço on-line.

Como, a rigor, a técnica do fichamento exige que se comece com a apresentação e contextualização do autor, em nosso primeiro caso, qual seja o de Popper, temos isto resolvido tanto pela apresentação do Dall'Agnol pela manhã de ontem quanto pelas próprias indicações que deixei sobre todos os autores, mais abaixo neste blog, na seção "Referências bibliográficas que são diretamente objeto dos estudos do Grupo" em que há um link no nome de cada autor a ser estudado que remete a uma página com dados específicos da biografia e pensamento dos autores.

Resolvido isto, penso que o principal enfoque dentro de nossa proposta é o da parte final recomendada na técnica de fichamento, por metodólogos como Antonio Joaquim Severino e Délcio Vieira Salomon, qual seja a parte da apreciação crítica, do momento em que o leitor, após a leitura detalhada do texto, passa aos apontamentos pessoais sobre o conteúdo e forma do texto abordado, de modo a formular novas questões e posicionamentos sobre os assuntos, atualizando-os e trazendo-os aos contextos específicos temporal e espacialmente.

Quaisquer dúvidas a respeito desta proposta de procedimento que vos trago poderão ser sanadas tanto aqui, na área de comentários, quanto no dia da próxima reunião.

De qualquer forma, iniciei este texto ontem e hoje já fui surpreso pelo texto do Dall'Agnol, que está totalmente conforme o espírito da proposta, o que é ótimo porque daqui por diante já podemos seguir as postagens, já contando com exemplos.

É importante ter em mente que o espírito do blog, ainda, é de intertextualidade, de modo que se forma um grande texto comunicando comentários e postagens de outros integrantes.


Texto objeto de estudo:
POPPER, Karl R. A Responsabilidade Moral do Cientista. In: NOTTURNO, M. A. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Tradução de Paula Taiper. Lisboa: Edições 70, 1996. p. 153-162.


De nossa discussão, como debatemos, relevantíssima a contribuição de Popper que, partindo do clássico Juramento de Hipócrates, discorre sobre a responsabilidade moral do cientista, buscando ampliar o debate para além do campo da medicina, abarcando toda e qualquer ciência que venha a produzir conhecimento e, portanto, poder, o qual influi decisivamente na vida de milhares de pessoas.

O ensaio do filósofo austríaco foi redigido em 1968, em razão de uma sugestão dos organizadores da Congresso Internacional de Filosofia realizado em Viena, em curta comunicação lida aos 3 de março daquele ano, e cuja sessão especial intitulou-se "Ciência e Ética: A Responsabilidade Moral do Cientista".

A afirmação central, o mote do autor, o elemento que desencadeia toda a questão a ser refletida é a de que "hoje, pode tornar-se ciência aplicada não só toda a ciência pura, mas também todo o conhecimento acadêmico puro" (1996, p. 153).

Para ele, falar em responsabilidade moral do cientista, em tempos de risco de guerra nuclear e biológica, consistia em um eufemismo, ou seja, um modo de tornar mais agradável algo de fato gravoso.

E o problema persiste, e a questão continua tendo que ser pensada.

Para o Direito e para sua ciência, pensando-se na relação dialética entre as formas de direito positivo e de produção científica em Direito e sobre o Direito, trata-se de uma questão central, dados os compromissos de uma hermenêutica ampla e constitucionalmente engajada que depende da consciência desta funcionalização direta da teoria à prática, na consecução daquilo que Konrad Hesse denominou, em "A Força Normativa da Constituição", como "vontade de Constituição", ou seja, uma intencionalidade do intérprete direcionada à aplicabilidade e à maximização dos valores, regras e princípios vigentes no texto constitucional que, ao invés de sucumbirem ante os "fatores reais de poder", têm a capacidade de, pela própria característica deôntica inerente ao Direito, conformar a realidade a objetivos jurídica e politicamente estabelecidos, gerando, portanto, mudanças nas relações fáticas, sempre rumo à dignidade da pessoa humana e a todos os outros objetivos de uma República e de um Estado Democrático de Direito, com destinações de proteção individual e coletiva, sem descuidar das prestações sociais.

Popper levanta uma série de questões de fundo ético, dado o contexto de sua fala, tais como a aplicação ética das teorias científicas, construídas estas mesmas sob os parâmetros de controle ético; o compromisso e a cooperação que deve se estabelecer entre professores e alunos na construção da pesquisa e de seus objetos; o nefasto culto da violência nas culturas de massa e como isso se relaciona com fenômenos de "agressividade humana" e ciclos de "resistência à agressão", "medo da agressão", "confusão mental" e "falta de flexibilidade intelectual" (1996, p. 157-158), segundo termos do próprio autor.

O grande mote empírico que reforça a urgência da responsabilidade moral do cientista, segundo se pode entender na explanação de Popper, mas sem querer com essa afirmação esgotar o texto, consiste na herança histórica advinda das guerras mundiais, especialmente no que se travou em termos de armamento nuclear e de violações em larga escala dos direitos humanos.

Para o autor, os julgamentos do Tribunal de Nuremberg "reconheceram que a consciência de cada ser humano é o derradeiro tribunal de apelo no tocante à questão de dever ou não desobedecer uma determinada ordem" (1996, p. 159).

Portanto, subsiste, mesmo em cenários de regramento legal, a necessidade de o sujeito posicionar-se perante a regra, avaliando-a, inserindo-a em um ordem de princípios e de valores que orientem o processo de interpretação e de decisão. Ou seja, mesmo havendo uma ordem objetiva das coisas, o universo da subjetividade tem cabal papel nos resultados obtidos com a ação humana.

Veja-se a passagem do autor que reforça o entendimento exposto acima, na defesa da liberdade pautada pelos critérios éticos, levando mesmo a uma desobediência,
A liberdade pela qual devemos estar preparados para lutar é precisamente a liberdade de desobedecer a uma ordem que, segundo pensamos, é criminoso obedecer. É dever inelutável de qualquer político leal numa democracia compreender a situação terrível em que pode vir a encontrar-se um cientista e lutar pelos direitos do objector de consciência, seja este cientista ou soldado (1996, p. 159).
A defesa da liberdade de pensamento, direito fundamental constitucionalmente estabelecido no artigo 5°, VI, é ressaltada por Popper, que partindo do argumento de nossa infindável ignorância, do que decorre a inafastável humildade intelectual, orienta a compreensão de que o cientista, ao produzir conhecimento, produz poder e, tendo em vista que " [...] o poder tende a corromper e que o poder absoluto corrompe de modo absoluto [...]" (1996, p. 160) a obrigação moral essencial do cientista reside justamente no controle, por meio da prevenção e da precaução quanto aos resultados do conhecimento produzido, em relação ao quanto tal conhecimento poderá ou não "perigar a liberdade" das pessoas.

Para o campo jurídico, que deve investigar as relações público-privadas na efetivação dos direitos fundamentais de todas as pessoas, a questão fica centralmente relevante, visto que o campo jurídico é aquele fortemente íntimo às esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, as quais consistem em e darão organização às instituições sociais, dando vida aos textos das leis, por meio de seus agentes, além da orientação que o Direito proporciona às práticas privadas, tudo isto entendido no contexto do "Império do Direito", conforme o pensador Ronald Dworkin.

Neste sentido, outro problema caro, levantado por Popper, é o do "sofrimento evitável" e da felicidade humana promovida nas esferas pública e privada. Para o autor, em duas passagens distintas,
[...] as discussões centradas numa revisão do Juramento de Hipócrates podem levar à reflexão sobre problemas morais tão fundamentais como a prioridade do alívio do sofrimento.
Há muitos anos, propus que a ordem de trabalhos para a política pública consistisse, em primeiro lugar, em encontrar maneiras e modos de aliviar o sofrimento, até onde fosse possível aliviá-lo. Contrastando isso com o princípio utilitário de maximizar a felicidade, propus que, no essencial, a felicidade deveria ser, e apenas pode ser, deixada à iniciativa privada, enquanto o alívio do sofrimento evitável constitui um problema de política pública (1996, p. 157).
Referindo-se à ciência,
Embora muitos tenham questionado se o avanço tecnológico contribui sempre para o aumento de nossa felicidade, poucos consideram ser tarefa sua descobrir quanto sofrimento evitável é conseqüência inevitável, embora involuntária, do avanço tecnológico (1996, p. 161).
O texto do autor permite uma série de reflexôes que perpassam os modelos políticos que temos adotado e seus efeitos sobre a vida de todos, consideradas as desigualdades sociais e as posições que os sistemas vigentes delegam a cada agrupamento de pessoas.

Por estar em pauta a questão do avanço tecnológico, Popper considera que o tecnicismo consiste em um problema na relação docente e na produção científica,

São necessários cada vez mais técnicos e, em consequência, cada vez mais doutorados se treinam apenas como técnicos. Com frequência, só são treinados em técnicas de medição. E nem seque se lhes diz que problemas fundamentais há para resolver pelas medições que efectuam em vista da sua tese de doutoramento. Considero esta situação indesculpável e irresponsável. Vejo-a como uma espécie de quebra do juramento de Hipócrates por parte do professor universitário. Pois a sua tarefa é iniciar o estudante numa tradição e explicar-lhe os grandes novos problemas suscitados pelo crescimento do conhecimento e que, por seu lado, inspiram e motivam todo o crescimento subsequente (1996, p. 156).
As questões tocadas por Popper, como já afirmado, mantém sua atualidade para pensarmos os problemas caros ao Direito, deste a formação nos bancos universitários, preparando às carreiras jurídicas, como no exercício profissional materializado tanto quando do ingresso nas carreiras como no próprio momento do estágio.

A responsabilidade moral do cientista, seja este entendido como profissão, seja este momento entendido como preparatório ao exercício profissional, é um problema constante para todo o ser humano que trabalha com conhecimento e que, portanto, veicula poder.








Para referências correlatas, acesse:
Código de Ética do Avogado, OAB:

Juramento de Hipócrates:


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