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Grupo de Estudos que vem sendo desenvolvido no Centro Universitário Curitiba, sob gestão do Núcleo de Pesquisa e Extensão – NPEA.

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Brevíssimas reflexões sobre Nietzsche em "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral"




Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão que ainda hoje anima os mais calorosos debates filosóficos, direta e indiretamente.

Por quase toda a área do conhecimento em que se produzir pensamento, de algum modo, por alguma via faz-se referência a este autor, seja por uma máxima por ele enunciada, seja pelo estudo mais detido de uma de suas obras. Para concordar ou discordar, o debate se anima na radicalidade que o autor nos põe ante aqueles valores mais naturalizados em nossa mentalidade.

Enfim, a despeito da popularidade do pensador e da sua aceitação (para o bem ou para o mal, para construir ou destruir) mais do que estabelecida no contexto do que se poderia chamar de pós-modernidade, em profícua influência em notáveis pensadores e intelectuais do século XX, a exemplo de Sigmund Freud e de Michel Foucault, só para citar alguns exemplos; cada texto de Nietzsche, dos curtos aos longos, permitem a imersão em perspicazes percepções da natureza humana, sua nobreza e mesquinhez, sua condição.

Porém, tudo isto ainda diz pouco e, portanto, discorre-se especificamente sobre o texto "Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral" de modo a fornecer maior concretude ao que se argumentou acima.

De modo muito geral, a base do texto de Nietzsche consiste na argumentação em torno da relação que se estabelece entre o impulso à verdade enquanto decorrência do contrato social firmado entre os homens (naquele entendimento tradicional das filosofias contratualistas). Se no estado de natureza se tinha o disfarce, o "camuflar-se", como principal modo de conservação e sobrevivência, o que levou o intelecto e a produção de conhecimento à crescente complexidade deste, é no momento em que os homens se organizam em sociedades pautadas por regras e Estado que se teria este apego maior ao critério da verdade enquanto condição mesma desta situação de sociedade (e mais, somente racional viabilizado nesta estrutura).

Aí está. O enganar nasce como estratégia intelectual e legítima de sobrevivência dos homens mais fracos fisicamente ante a dominação dos outros que lhe sobrepujariam recursos e possibilidades de continuidade do impulso de vida se não fossem despistados por espertas estratégias dos que pensam. Representar, mascarar e dissimular para, criando estrategemas, livrar-se das dominações. Em vista deste primeiro cenário, o de natureza, o apego a verdade seria uma aberração, uma irracionalidade, pode-se dizer, um suicídio.

Pois bem. Complexificando-se uma sociedade, na especialização da linguagem, espaço ganham os contrastes e, assim, intensificam-se as distinções entre verdade e mentira e agrega-se a isto uma série de julgamentos morais valorativos conferindo determinadas avaliações às condutas, pois, repercutindo socialmente na aprovação ou reprovação das condutas qualificadas como existentes ou sob a égida da verdade, ou sob o pálio da mentira.

Assim, a noção de verdade, para Nietzsche, nascida no contexto do contrato social, representa um consenso que os homens trazem em si justamente na medida em que representa uma ordem uniforme e válida para a mensuração das coisas, comunicação e demais trocar sociais, pode-se interpretar. Valer-se de designações válidas, distorcendo-lhes os efeitos uniformes seria ingressar no campo da mentira, fazendo deixar de corresponder a afirmação lingüística à realidade, ao objeto a qual se refere, no que as trocas arbitrárias de significados são o principal meio empreendido para a mentira, desvirtuando as convenções e assim ludibriando os interlocutores.

Problematizando as relações entre língua e verdade, Nietzsche detecta a arbitrariedade na fixação de sentidos ligados aos estímulos sonoros e visuais das palavras, de modo que as "transposições arbitrárias" apresentam-se como a justificativa tanto para a escolha dos sentidos em uma língua quanto da diversidade de línguas, que revelam não haver uma identidade essencial que liga os sons da fala às coisas que representa.

Este sentido é importantíssimo na interpretação do texto, uma vez que desnaturaliza aquilo que se teria por natural, como ocorre com determinada palavra da língua mãe referindo-se a determinado objeto, relação a qual, se não passar por avaliação crítica, pode ser tida como única, absoluta, natural, desde sempre existente e assim por diante, ou seja, passa desapercebido os veios culturais ligados aos símbolos de determinada sociedade.

Esta discussão posta pelo autor culmina com uma possível conceituação da verdade que contribui para um melhor delineamento do raciocínio do autor no texto, neste entalhe de diferenciações e identificações progressivas a que se refere o autor na própria gênese de quaisquer conhecimentos. Leia-se, sobre a verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornam gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moeda. (p. 48).

Em uma primeira leitura, aos mais apegados ao significado da verdade (ou aos mais apegados ao sentido da mentira, enfim) poderia se ter a impressão, pois, de completa arbitrariedade que tudo legitimaria. Afinal, no dizer do filósofo alemão não haveria um núcleo rígido que ligasse a verdade às coisas a não ser o consenso entre os homens e o uso efetivo das formas acordadas.

Assim sendo, a noção de verdade seria um esquecimento: esquecimento de que entre a linguagem e a coisa há a metáfora. Sumindo a metáfora da percepção imediata, alcança-se a crença de se estar na posse da verdade.

Por fim, Nietzsche considera o homem intuitivo, e não somente o homem intelectivo, concluindo que cada um, na sua maneira de conhecer o mundo, seja pela abstração e conceitualização, seja pelo aspecto artístico, por meios diferentes ambos tentam dominar a vida, eis a função precípua do conhecimento. Contudo, ainda em novo contexto mesmo amparado por regras de conduta que visam à estabilização social, ainda ambos os homens, intuitivo e racional, apresentam-se diretamente implicados pelo sofrimento.

Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já em suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais freqüência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade e ilusões, proteção contra as tentações de fascinação desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com algum digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela (p. 52).

Do abordado neste brevíssimo resumo comentado da obra do filósofo alemão, pode-se perceber que estrutura uma teoria, ainda que não sistematizada, das origens do conhecimento, quanto mais esta subordinada à ordenação social, por um lado, quando da desorganização desta, em que a atitude de certa deslealdade não só é necessária como legítima e, ainda, quando esta sociedade em organização por meio das formas estatais, apresenta-se, pois, necessária a elevação da noção de verdade enquanto metáforas e acordos para se criarem parâmetros de ação comum entre os homens, bem como repressão de arbítrios desmedidos, o que resulta também em uma maior equiparação de forças eis que não se está submetido apenas ao poder físico fornecido pelo corpo de cada um.


Referência:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).



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