... a ciência social como uma ciência humana, demasiadamente humana
Grupo de Estudos que vem sendo desenvolvido no Centro Universitário Curitiba, sob gestão do Núcleo de Pesquisa e Extensão – NPEA.

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Acadêmicos:

Milton Santos

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Milton Santos
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(1926 - 2001)
Entrevista concedida a Vera Maria de Carvalho (SBPC) e Vera Rita da Costa (Ciência Hoje/SP).
Publicada em junho de 1998.
Ao receber o prêmio Vautrin Lud, em 1994, o professor Milton Almeida dos Santos foi descoberto pelo público brasileiro. Comparável a um Nobel para a Geografia, o prêmio abriu-lhe as portas dos principais meios de comunicação brasileiros. Sob a mira dos holofotes, passou a ter que administrar sua exposição à mídia - um problema para quem, crítico feroz dos processos que desumanizam o homem neste fim de século, prefere "manter-se outsider" e vê na solidão "uma necessidade do intelectual". A vaidade — diz Milton Santos — é o fio da navalha do intelectual: se por um lado é seu alimento, por outro pode levá-lo ao acomodamento. E o acomodamento é uma situação inaceitável para quem há mais de quarenta anos vem promovendo uma revolução na geografia e é admirado por sua energia, vontade e alegria contagiantes.
Nascido em Brotas de Macaúba, na Chapada Diamantina, Bahia, em 3 de maio de 1926, Milton Santos vem de uma família cujos avós paternos eram de origem humilde, possivelmente escravos. Do lado materno, consta que seu bisavô era dono de escravos e seu avô, amigo de Rui Barbosa e possuidor de bens. Essas e outras histórias são relatadas no livro O mundo do cidadão — um cidadão do mundo,organizado pela professora Maria Adélia Aparecida de Souza, amiga e colega de Milton Santos no Departamento de Geografia da USP. A edição é da Hucitec, lançada em 1996, em homenagem aos setenta anos do geógrafo. Se dependesse do próprio Milton Santos, nada saberíamos de seu passado. Diz ele que sua vida e história pouco interessam, o que importa e o preocupa é o futuro. Além disso, ironiza, de que adianta se perguntar na Bahia de que família somos? Isso é coisa de europeu, orgulhoso de suas origens "nobres"..., diz.
Sua trajetória intelectual — ao contrário da dos mitos modernos — foi lenta, trilhada passo a passo. Dos pais, professores primários, recebeu os primeiros ensinamentos. Em 1936, aos 10 anos, foi para Salvador estudar no internato do tradicional Instituto Baiano de Ensino. Ainda jovem se destacou como aluno, líder estudantil - foi um dos fundadores da Associação dos Estudantes Secundários da Bahia — e agitador cultural da escola. Foi também nessa época de ginásio que ocorreram as primeiras incursões de Milton ao jornalismo, como idealizador e executor dos jornais estudantis. Vinte anos mais tarde, e já formado em direito pela Universidade Federal da Bahia (1948), o jornalismo se tornaria uma de suas profissões — exercida, entre 1956 e 1964, como redator de A Tarde, o jornal mais lido e influente da Bahia naquele período. A outra profissão — de professor — ele exerce desde os 15 anos, quando começou a dar aulas particulares aos colegas de séries atrasadas. Este ano, portanto, Milton Santos completa 57 anos de magistério — do nível secundário à pós-graduação.
Toda essa experiência transcorre em paralelo à proposta, sempre presente, de criação de uma Nova Geografia - um caminho que ele começou a trilhar ainda em 1954, quando se tornou professor da Faculdade Católica de Filosofia, em Salvador, e estabeleceu contato com a escola francesa de geografia. Em 1958, doutor em geografia pela Universidade de Estrasburgo, retornou à Bahia e fundou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais na UFBA, para formar pessoal em pesquisa, desenvolver estudos geográficos sobre o Estado e fornecer subsídios aos programas governamentais da época.
Tal laboratório, segundo a professora Maria Auxiliadora da Silva, da UFBA, foi um "embrião revolucionário de todo o desenvolvimento posterior da geografia na Bahia, um marco histórico e um pólo de atração para geógrafos de outros estados". Lá foram produzidos importantes trabalhos sobre a cidade de Salvador, o Recôncavo, a bacia do Paraguaçu e a região de Jequié. Lá, também, os jovens geógrafos brasileiros puderam conviver com professores visitantes ilustres, como Jean Tricart, Pierre Monbeig, Etienne Juillard, Jean Dresh e Pierre George, que haviam sido atraídos pela efervescência da geografia baiana.
Ainda nos anos 60, incansável e crítico, Milton Santos embrenhou-se na política, numa tentativa audaz de transformar a realidade social que transparecia nos estudos geográficos produzidos na UFBA. Convidado pelo Presidente da República Jânio Quadros — a quem havia conhecido durante a cobertura para A Tarde da viagem presidencial à Cuba — o já conhecido professor, jornalista e geógrafo, tornou-se também representante da Casa Civil de Jânio na Bahia e, em 1964, presidente da Comissão Estadual de Planejamento Econômico (CPE) no governo estadual de Lomanto Júnior. Com a renúncia de Jânio, identificado com a corrente renovadora do planejamento e tendo desafiado interesses tradicionais, Santos foi alvo do primeiro movimento de repressão a intelectuais da Bahia. Entre as propostas de "intervenção urbana" que teriam "desagradado ao regime" estava a criação de um imposto sobre a fortuna, em discussão na CPE. A viagem à Cuba e os artigos sobre a revolução cubana também devem ter contribuído para que seu nome integrasse os arquivos do Exército. Demitido do cargo de professor da UFBA, obtido por concurso, passou 90 dias preso no quartel do Cabula, em Salvador, só saindo de lá por causa de um pré-infarto e de um derrame facial que o levaram ao hospital. Sem alternativa e tendo um convite de colegas franceses, deixou a Bahia em dezembro de 1964.
No exterior, Milton Santos foi professor das universidades de Paris (Sorbonne), Toulose e Bordeaux, na França, de Toronto, no Canadá, e da Venezuela e Tanzânia (Dar es Salaam). Passou também pelos Estados Unidos, por Cambridge (Massachusetts Institute of Technology) e Nova York (Columbia). Foi consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização dos Estados Americanos (OEA) e Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Dizem os colegas de trabalho que foi essa peregrinação pelo exterior e o distanciamento forçado do Brasil que permitiram a Milton Santos o salto intelectual grandioso que deu - ampliar o "mundo do cidadão", a sua visão da geografia, e tornar-se "cidadão do mundo". Autor de mais de 40 livros, 300 artigos e homenageado com 13 títulos de doutor honoris causa, Milton critica os "mecanismos de controle de produção acadêmica atualmente em voga" — como o número de citações de um autor. Para ele, as "relações de poder na academia se expressam até nas bibliografias".
Motivos para desconfiar da academia Milton Santos tem: ao retornar ao Brasil em 1977 - para que o seu filho Rafael "nascesse baiano" — teve, mesmo sendo reconhecido internacionalmente, que vencer resistências. Diz o geógrafo que não havia "espaço" para ele na universidade brasileira. Até a USP — onde se encontra atualmente — não o quis: "essa paixão uspiana por mim é recente", ironiza.
Essa fina ironia - assinalam os que tiveram oportunidade de conviver com Milton Santos — é sua marca registrada. É ela que torna a leitura de seus textos desafiadora e as conversas, instigastes. Tratados por ele, temas como o tempo, a aceleração contemporânea, o funcionamento da técnica e a dignidade dão à geografia um tom de filosofia, surpreendente para quem foi educado na geografia tradicional.
Convidado a traçar um perfil de sua história e trajetória intelectual, Milton Santos recusou-se a contar qualquer aspecto da vida pessoal. Mas não se furtou a discorrer sobre sua "paixão atual": o mundo e as mudanças a que presenciamos.
Que papel o senhor atribui hoje à comunidade científica, aos intelectuais? Que contribuição a academia poderia dar para a construção do país?
Creio que a universidade deveria encontrar mecanismos para dar visibilidade às pessoas que têm vocação para a produção científica — à chamada produção científica, que está, inclusive, em vias de ser redefinida. A universidade deveria acelerar a evolução dos jovens que despontam, que são numerosos e têm futuro. Essa revolução emergente deveria estar no programa dos dirigentes universitários. Mas não é isso que observo nas universidades brasileiras. Cada vez mais, os postos de comando na universidade são ocupados por pessoas sem autocrítica, e o prestígio e o renome são associados com esses postos. Em vez de estimular as trocas envelhecidas e sebosas, com tendência à esterilidade, das pessoas que conjugam saber e poder, os dirigentes universitários deveriam procurar descobrir novos e velhos talentos e lhes oferecer oportunidades.
A universidade está envelhecida, encerrada em torno de si mesma?
Que a universidade tenha um certo encerramento em torno dela não é de todo ruim. Acho que há um discurso de abertura da universidade à comunidade — que transpareceu sobretudo quando se isolou ocampus da USP com um muro — que me parece de certa forma injusto. Se a universidade mostra o que faz, e o que faz é novo e significativo, ela está aberta e em sintonia com a comunidade. Mas hoje não se observa mais o discurso aberto e franco entre os intelectuais. O nosso mundo é o mundo onde a ideologia deixou de interessar e onde o debate intelectual é nulo; onde as idéias são enlatadas, como tudo o mais. A universidade é medrosa: ela perdeu a coragem de escolher, de discernir entre o que é valioso e o que não é. Ela teria que encontrar, por exemplo, uma forma de exprimir seu apreço pelas pessoas que trabalham. A USP chegou a ter no passado um mecanismo de premiação, mas os prêmios foram abolidos por falta de coragem de escolher e dizer "fulano é uma pessoa interessante". Isso foi uma covardia intelectual e uma demonstração de incapacidade de ser universidade.
Como o senhor avalia a saída de profissionais das universidades públicas para as particulares?
Primeiro há que saber se a universidade é pública mesmo. A gente continua insistindo que as universidades mantidas pelo governo são públicas. Mas eu questiono isso: são públicas apenas pelo fato de serem mantidas pelo governo? Acho esse um debate interessante que a SBPC poderia lançar...
Que características o senhor citaria para considerá-las "não-públicas"?
As universidades são lugares de acesso restrito. A sociedade ainda não tem raiva da universidade, mas começa a ter ressentimento, porque é um lugar a que a maioria das pessoas não pode aceder. Se a maioria não tem acesso, como podem ser públicas? É um equívoco! A discussão que se faz cada vez que tem vestibular é equivocada; discute-se a dificuldade do exame, o número limitado de vagas etc. Deveríamos discutir o fato de que a população — as grandes massas — não vão entrar na universidade. Portanto, ela não é pública. Ressalto sempre isso e faço um apelo para que o debate não se torne o mesmo debate estéril a que estamos acostumados a assistir. Precisamos enfrentar essa questão de maneira clara e corajosa. Quando aparece alguém que diz alguma coisa realmente interessante, esse é corajoso. E nós estamos aqui para sermos todos corajosos. Mas o fato de encontrarmos tão poucas pessoas corajosas na universidade é um sinal de que ela está em processo de falência.
A universidade seria, então, mais um agente de exclusão social?
Sim, mas o pior é esse processo ser considerado como normal e legítimo dentro e fora da universidade. Deveríamos fazer uma lista de verdadeiros problemas e enfrentá-los. As propostas de reformulação do vestibular, por exemplo, ou de reservas de vagas para os melhores alunos do 2° grau não me parecem soluções, mas simples paliativos. Prefiro como critério o sistema universal: todos têm direito a entrar na universidade, desde que queiram. Deveríamos criar condições para fazer valer esse critério. O debate, da forma como está sendo travado, em favor dos melhores, esconde uma vontade de elitismo; ser bom aluno é freqüentemente obra do acaso, se não é o resultado de uma herança familiar ou social.
Como se pode ser bom por acaso?
Será que o que se exige para ser um bom aluno é o que se deve exigir de uma pessoa em formação? Fui um bom aluno porque tive oportunidade de ter bons guias. Acho também que foi muito mais o resultado de uma herança familiar e social do que uma questão de virtudes próprias. Tive oportunidades: estudei em casa primeiro e depois em boas instituições de ensino. Eu estava, portanto, fadado a ser um bom aluno.
Como o senhor avalia a geografia produzida hoje, sobretudo a brasileira?
Há 20 anos foi feita uma espécie de revolução cultural na geografia, que não foi feita em nenhum outro país. A verdade é que o Brasil é certamente a maior potência geográfica do chamado ocidente. Não há geografia mais dinâmica do que a brasileira, nem na Europa nem na América do Norte. Não há também uma geografia mais numerosa: o Brasil é o país que tem mais gente sendo obrigada a ler geografia no ginásio. É também o país onde houve o esforço maior por impor idéias filosóficas à disciplina e, portanto, onde há uma busca de produção teórica na área. Essa busca obtém respostas diferentes daqueles que são encarregados de transmitir, de fazer com que a epistemologia da disciplina chegue aos estudantes, tanto no curso superior como no secundário. Essa busca nova parece ser mais facilmente aceita e ecoar melhor no ensino secundário, onde começa a aparecer nos livros didáticos e nos parâmetros curriculares do MEC, ainda que de forma incompleta e insatisfatória. O interesse pela geografia no secundário é grande.
A que atribui esse interesse?
Acho que os adolescentes querem entender esse mundo novo, que aflora tão cheio de confusão e mistério, e a geografia aparece como uma possibilidade de enfrentar esse grande mistério. No ensino superior, a tendência atual é diferente, é de fragmentação da disciplina. Quando comecei a ensinar aqui na USP, a lista de disciplinas era magrinha, hoje ela é enorme, gorda. Há em toda parte — não apenas na geografia — uma fragmentação que me parece ameaçadora.
que caracteriza essa "nova geografia" ou essa nova forma de abordar a geografia?
Sobretudo a idéia de que o território é um ator da vida social. O território não é apenas aquele quadro onde a sociedade registra os seus movimentos. O território é a própria sociedade em movimento; sem o território a sociedade não pode ser explicada. E neste fim de século esses fenômenos são muito mais sensíveis, porque a globalização é também uma escolha precisa dos lugares — para produzir econômica, política e culturalmente. Nunca houve ideologia tão poderosa e irresistível como a do período atual; uma formidável ideologia, preparada cientificamente, a mando de quem detém o poder, talhada por publicitários e que atinge a todos, através da produção de livros, artigos, músicas etc. Como é baseada na ciência e na técnica, o poder dessa ideologia é ainda maior que o das anteriores. Toda essa produção, seja econômica, política ou cultural, tem base em lugares que são adequados a elas. Há, então, uma relação entre a maneira como os lugares são e a possibilidade que oferecem a essa produção típica do fim do século. A nova forma de encarar o espaço geográfico está dando à geografia essa força que ela tem que aproveitar logo, porque a tragédia da geografia é que ela descobre caminhos que são rapidamente tomados por outros, como o da sociologia, da economia e do planejamento urbanos. Deveríamos tomar consciência dessas novidades de imediato, apoderarmo-nos desses fatos e transformá-los em temas teóricos e empíricos da disciplina.
Por que está cabendo à geografia explicar o mundo contemporâneo?
O que está acontecendo é o que chamaríamos de maturidade histórica da geografia. Cada disciplina tem um momento em que acaba se impondo como necessidade de explicação. A psicologia teve esse momento no final do século passado e a geografia só o está tendo agora, por causa do papel invasor da técnica na vida de todo mundo. Talvez a geografia vá ter um papel central nesse debate sobre o mundo porque não se pode tomar e compreender a técnica isoladamente. O impacto da técnica tem que ser interpretado num contexto mais amplo. Com a ajuda da crítica e da filosofia, a geografia está dando um salto qualitativo e se tornando uma disciplina obrigatória para a interpretação do que nos cerca. Isso é muito importante, principalmente porque a técnica vem sendo aceita de maneira muito simplória e acrítica.
A universidade, por exemplo, está se tornando refém da técnica. Não passa um dia em que eu não receba um comunicado pedindo para imergir na técnica, como se eu fosse uma coisa... Me pedem que me comunique pela Internet. Há todo um aliciamento para me transformar numa coisa, para reduzir a minha capacidade de ser intelectual... E é muito difícil você resistir, pela forma como a vida acadêmica se organiza hoje. A chave da solução talvez seja esta: desorganizar as universidades e desinstitucionalizá-las. Caso não se faça isso, as universidades, principalmente as mais institucionais — onde as pessoas têm mais orgulho — entrarão em decadência.
Quando o senhor analisa a globalização e os meios de comunicação rápidos, não está sendo muito severo? Não vê vantagens neles?
Não sou refratário a eles nem à técnica. Seria um erro responsabilizar a técnica pela desordem. O erro está na sua organização e na maneira como a estamos usando. Todos imaginávamos que com a técnica teríamos um mundo ético, feliz e confortável. No entanto, isso só ocorre para alguns, bem poucos... A técnica deveria servir para promover a correta informação da população, o que não ocorre. Em vez disso, ela promove a pressa, a competitividade — que é a busca da velocidade absoluta. Para quê? Eu não tenho pressa! Não quero pressa. Meu trabalho e a pressa não se casam. A pressa é a mãe da morte, é a porta aberta para o falecimento da vida acadêmica sadia. A universidade atual não tem pausa nem repouso; ela é só carreira. Eu preciso de pausas! Por que não se produzem grandes livros no Brasil? Porque não se tem tempo de sentar. É só movimento: as pessoas consomem dinheiro e tempo viajando, sem produzir praticamente nada. O resultado é que não há grandes livros: as pessoas quando muito se transformam em produtoras de coletâneas...
Mas a pressa não é uma característica só da academia. Toda a sociedade está imersa nela...
Ao contrário. Esse é um engano comum: a velocidade é mais um privilégio de um mundo pequeno. A velocidade da técnica só vale para alguns. A sociedade não é tocada pela velocidade — a absoluta maioria da população é formada de homens lentos. A velocidade é uma ideologia: a Internet para se comunicar, o helicóptero para se deslocar, quem os usa? Apenas uma centena de senhores! A população não pode ter pressa, porque não tem as condições da velocidade. A força, o papel da ideologia são tão grandes que não paramos para refletir nem sobre a própria pressa. Quando se estuda geografia, se vê isso: vemos como o território é percorrido e nos damos conta de que há uma série de "meias-verdades" ou — a palavra desagradável - mentiras, que constituem o arcabouço que conduz o mundo. Nós não somos conduzidos por sistemas de idéias, mas por sistemas ideológicos! A globalização é primeiramente uma ideologia, e aquilo que a torna ideologia cria um sistema que desemboca na exclusão. A exclusão e a perversidade sempre existiram, mas, agora, elas existem como sistema. Nada é mais violento no mundo de hoje do que a informação; ela induz o consumo, que conforma nossas mentes e conduz nossas ações. O desejo de consumo e a percepção de sua dificuldade de concretização geram descontentamento e se transformam em fermento da novidade.
É comum nos deixarmos fascinar pelos objetos e pelo movimento, mas, se olharmos o que está atrás dos objetos, percebemos a sua motivação real. Para que você quer se comunicar com pressa? Em certos domínios, talvez isso se justifique, mas, mesmo nesses domínios, essa necessidade de ser apressado já é fábrica de perversidade. Não houvesse essa busca tão grande de pressa, o fenômeno financeiro da quebra das bolsas, que está percorrendo o mundo inteiro, não teria o impacto que está tendo. Não acredito que o mundo do futuro vá ser tão veloz como está sendo. Já se começa a pensar em reduzir a velocidade. Essa é a próxima etapa da história: a busca de uma velocidade menor. Vivemos um momento de delírio do que estamos chamando equivocadamente de humanidade. Não é humanidade! Esse momento vai ser substituído por um outro, de reflexão e de volta à uma vida mais digna, da qual nós estamos nos afastando.
Que indícios fazem o senhor ter essa avaliação?
Tudo que vem de baixo e que nós não olhamos! A universidade estuda as classes médias e os ricos. Os pobres entram como creme chantilly!Não estudamos realmente o que está embaixo na sociedade e não percebemos seu movimento... Mas o que está se criando de baixo para cima, no mundo inteiro e no Brasil em particular, é tão formidável que não deixa nenhuma dúvida de que esse edifício coxo da globalização vai em breve ser substituído. Não sou uma cartomante, mas posso ver que o processo existe e nós relutamos em olhar para ele. As pessoas de baixo são apenas apontadas como criminosos, delinqüentes, não-sociais. Nós os criminalizamos e os afastamos de nossa preocupação intelectual ou, então, os assimilamos a partir de uma correção política — de uma visão politicamente correta — mas não para estudá-los dentro do funcionamento dinâmico das sociedades e do mundo como um todo.
O que me preocupa hoje são esses movimentos de fundo, que vêm de baixo para cima e que são imperceptíveis para muitos. A pressa e a ideologia que a cria acabam reduzindo a beleza da vida; as próprias relações pessoais se tornam fragmentadas, superficiais... A gente não goza mais um encontro, uma conversa; eles só preenchem obrigações pragmáticas. Isso tem um papel negativo na evolução da sociedade.
Que fatores o senhor assinalaria como causadores desse estado?
A ciência é um deles, pois nos conduziu a isso. Ela deixou de ser universal, de servir a todos. Não é à toa que as pessoas com um mínimo de lucidez olham o cientista com grande desconfiança. Houve um deslocamento: o dinheiro tornou-se o centro do mundo e o homem saiu de cena. A disciplina histórica tem problemas justamente porque o homem foi posto de escanteio e, em seu lugar, colocaram o dinheiro, a economia, o mercado. A ciência deveria servir à sociedade, aos homens, mas está servindo aos interesses econômicos. Os pesquisadores — cada vez mais imersos na técnica, no fazer, e pressionados por demandas do mercado — tornam-se pessoas instruídas, mas não se tornam intelectuais. Existem geógrafos, por exemplo, que resolveram aceder ao mercado e que fazem coisas parcializadas. Outros, com resistências profundas, ainda buscam o entendimento compreensivo do mundo. Essas posturas dependem de como encaram seu objeto de estudo. O que está acontecendo é que o mercado global junto com a técnica — que é um fato novo e que não pode ser visto isoladamente, mas sim como um fator econômico e político que comanda a ação humana - restringem as potencialidades da ciência e forçam o pesquisador a atender a suas demandas. Embora façamos referência às possibilidades da técnica, a verdade é que ela está disponível apenas para poucas pessoas.
Como o senhor avalia o critério de produtividade acadêmica baseado no número de publicações e citações?
Acho graça nessa mania da SBPC, das sociedades científicas e de setores da universidade de citation index. É de um ridículo total, porque esse endeusamento da citação é também o endeusamento da dimensão política do fazer ciência. É aberrante e, em muitos casos, o número de citações expressa apenas a mediocridade dos que são muito citados. O que eles escrevem é muitas vezes apenas a repetição do que escrevem os deuses das universidades comandantes! E o pior é que, mesmo repetindo outros, eles são considerados geniais... Outro absurdo — que revela nossa posição submissa — é a exigência de conseguir o aceite para ir para universidades no exterior. Certas agências de financiamento brasileiras também referendam esse ritual e exigem de nós essa prova de submissão. Essas são pistas de como e o que mudar, mas o sistema de poder nas universidades é muito fechado e sólido, difícil de romper.
O senhor se considera pessimista, um paladino solitário?
Não sou contra a solidão, porque a solidão é uma forma de crescer. Participar de um grupo, por menor que seja, já é um problema, uma autocondenação. Nunca houve grandes intelectuais que fossem enturmados. O grupo estabelece regras, gentilezas e certezas - de que vai ser citado, convidado, contratado.
Essas gentilezas geram o acomodamento e tolhem o indivíduo — acabam lhe dando a certeza de pertencer. No Brasil, cito meu próprio caso: a recusa que me foi feita durante anos e anos só serviu para melhorar a qualidade do meu trabalho, porque, diante das dificuldades, você próprio acaba duvidando do que faz e se esforça por fazer cada vez melhor. De repente, me descobriram... o que também se tornou um problema, porque passou a ser preciso administrar essa descoberta e exposição,
A que o senhor atribui a descoberta de sua pessoa e seu trabalho?
Acho que é porque fujo um pouco do "facultês", do discurso próprio da universidade. Falo de uma maneira diferente... Houve momentos em que fui chamado, inclusive, para participar das reuniões da SBPC, mas os grupos são tão fechados e gostam tanto de ser poucos, que qualquer abertura representa uma ameaça. Agora o mundo mudou e se tornou necessário entender as mudanças. Nós aqui do departamento de geografia — não é um esforço apenas meu, talvez eu esteja sendo o porta-voz - estamos descobrindo isso e tentando discutir a globalização. Nos colocamos à frente da tentativa, ainda não completa, de entender o que está se passando no mundo atual. Ao mesmo tempo, o reconhecimento do nosso trabalho no exterior, que já vinha se dando lentamente, ganhou um fato publicitário maior, o prêmio Vautrin Lund, que gerou uma "onda" Milton Santos. Preciso agora administrar isso, para que não passe a pensar que sou bom mesmo... A vaidade é o fio da navalha do intelectual. É legítimo que ele queira ser reconhecido - esse é seu alimento, o incenso que recebe — mas é preciso cuidado... Bourdieu mostrou bem como o reconhecimento externo é importante na academia, como os holofotes da mídia geram prestígio interno e criam um sistema de reconhecimento e poder. Encontrar o famoso equilíbrio é difícil, mas a experiência em jornalismo me deu um certo conhecimento dos homens que me ajuda a lidar com isso.

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