... a ciência social como uma ciência humana, demasiadamente humana
Grupo de Estudos que vem sendo desenvolvido no Centro Universitário Curitiba, sob gestão do Núcleo de Pesquisa e Extensão – NPEA.

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sábado, 18 de julho de 2009

O papel da ciência nas regras de conduta: uma leitura do texto “Ciência e valores humanos” de Jacob Bronowski


Texto sobre a relatoria de 03/07/2009

Jacob Bronowski aborda neste livro (1979) o descompasso entre o desenvolvimento da ciência e as questões éticas decorrentes das aplicações dela. Embora seja possível observar que as ciências passaram por um grande avanço nos últimos séculos, este avanço foi essencialmente técnico. O apego á técnica, sustentado pela ingênua idéia moderna de que o desenvolvimento da ciência implicaria o desenvolvimento da civilização, resultou na catástrofe atômica de 1945. Para Bronowski esse fato representou, de um lado, a extensa escala de indiferença com o homem a que a humanidade chegou e, de outro, um abrupto despertar da consciência dessa indiferença. É nesse sentido que sustenta que em um mundo feito pela técnica científica “qualquer homem que abdique do seu interesse pela ciência caminha de olhos abertos para a escravatura” (1979, p. 12). Essa discussão continua extremamente atual. Uma nova forma de tecnologia, talvez ainda não previsível na segunda metade da década de 1950, pode causar mais controvérsias que a pesquisa nuclear. É a nanotecnologia, que em discursos de cientistas já foi associada a possíveis usos militares.

A partir da consideração fundamental de que ninguém pode se exonerar da responsabilidade, o autor desenvolve neste livro a tese de que a civilização forma, com suas partes, um todo e pretende expor os laços que animam e tornam coerente uma sociedade. Tem o objetivo, com isso, de apontar para a necessidade de se reposicionar a ciência frente às regras de conduta. Como um grupo de estudos em uma faculdade de Direito, avaliar essa proposta do autor deve ser, para nós, de grande interesse. A nós, leitores, caberá, portanto, sustentar um distanciamento crítico frente a ela, buscando verificar a todo tempo se o autor desenvolve sua exposição com foco nela e se ele consegue atingir sua finalidade. A abordagem do tema é feita em três etapas: uma aproximação da “natureza da atividade científica” (1979, p. 12); uma leitura da natureza da verdade na ciência e os reflexos dessa posição e, por fim, uma abordagem “[d]as condições para o sucesso da ciência e os valores que a levam para uma congruência coma dignidade humana” (1979, p.12).

No capítulo que trata do espírito criador e da natureza da atividade científica Bronowski propõe uma definição de ciência que ultrapassa qualquer noção convencional do termo. Ele a define como “a organização do nosso conhecimento de tal modo que domine mais o potencial oculto da natureza” (1979, p. 13). Essa noção de ciência abarca não apenas o conhecimento puro produzido por seus métodos e técnicas específicos, mas também o uso que se faz desse conhecimento, de modo que fazer ciência é conhecer e também exercer controle sobre os resultados do conhecimento e sobre os meios em que este penetra. Com base nisso, o autor é contundente ao afirmar que não deve ser traçada distinção entre conhecimento puro e conhecimento aplicado, porque o trabalho do cientista é também animado por interesses de sua época, além de seus interesses individuais. Sobre o domínio da natureza pelo homem, Bronowski salienta que foi o conhecimento, e não a força, que àquele proporcionou essa condição.

Posta a definição de ciência que Bronowski adota, segue o autor na tentativa de descrever a natureza dessa atividade. Para ele a ciência é trabalho imaginativo e criativo. O autor refuta qualquer comparação do conhecimento científico com uma coleção de fatos e do parágrafo 5º até o 9º explica o que isso significa. A atividade científica não é pura atividade neutra, fotográfica. Ela tem essencialmente caráter imaginativo. Bronowski sustenta essa idéia em exemplos de descobertas científicas que foram movidas por suposições imaginárias dos cientistas que as fizeram. Disso, posso afirmar que o simples fato de o cientista trabalhar com a confirmação e a refutação de hipóteses já evidencia o argumento. É sabido que hipóteses são pensadas a partir da intuição do pesquisador, que em uma etapa posterior as submete à prova. Ora, e o que são então hipóteses se não algo que se desprende do imaginário dele?

Bronowski afirma que o ato de criação científica compreende um ato de fusão, de aproximação, de busca de alguma unidade onde existem semelhanças ocultas. Esse espaço, onde as semelhanças estão, é a variedade da natureza e a variedade da experiência individual. A ciência não é, portanto, um saber puramente descritivo da realidade. Caso o fosse, suas teorias só poderiam ser consideradas verdadeiras ou falsas uma única vez e refutadas ou aceitas para sempre. Assim, a ciência “não é uma cópia da natureza, mas uma recriação da mesma” (1979, p. 26), o que justifica a impossibilidade de se separar saber teórico de saber prático. Inclusive Popper (em breve colocarei as referências com precisão) demonstra em termos lógicos, e julgo sua hipótese plausível, que o conhecimento descritivo não é exatamente descritivo. Tudo o que ele pode fazer é confirmar pelo exemplo e pela experiência uma estrutura de ocorrência de fatos imaginada e compreendida de uma forma determinada por um cientista. Essa estrutura de ocorrência manifesta muito mais o raciocínio do que a descoberta de uma ordenação verdadeira da natureza. Bronowski parece ciente disso ao afirmar que todo conhecimento é aproximado e não corresponde a uma plena descrição dos fenômenos sobre os quais versa.

Em síntese, a atividade científica é criativa, porquanto sua ordem é descoberta, criada a partir de um jogo de conjecturas, e também imaginativa, por fazer essas conjecturas a partir da busca de semelhanças ocultas entre as coisas.

Cumprindo o plano anunciado, Bronowski segue sua exposição no segundo capítulo buscando elucidar sua afirmação de que a civilização cientificista é movida por um hábito de verdade. Define-o como “o hábito da experiência e a correção do conceito pelas suas conseqüências” (1979, p. 52). Essa tendência à experiência como forma de se atingir alguma verdade é algo característico da civilização moderna ocidental, e não encontra correspondência necessária em todos os povos. Cabe, portanto, elucidar a forma como o autor entende a relação do ocidente com o que este chama de “verdade”.

O autor parte da constatação de que a ciência e arte, enquanto atos de criação, estão sempre sujeitos a revisões, releituras. Esses atos de posterior apreciação são novos atos de criação. A interpretação, portanto, sempre “reativa o ato de criação” (1979, p. 33). Porém a criação científica não é idêntica à artística. O cientista trabalha sobre uma perspectiva de criação sempre mais limitada. Sabendo que o cientista e o artista de maneiras distintas pretendem atingir suas particulares perspectivas do que consideram verdadeiro, é necessário aclarar este termo. Ora, se cientista e artista se pautam pela busca de uma verdade, é evidente a força propulsora dela e do que eles entendem que ela seja.

Jacob Bronowski inicia por afirmar que só percebemos que algo existe através de atos de reconhecimento. A percepção transcende qualquer esquema lógico-dedutivo, vai além, também, da lógica indutiva e envolve nelas a marca decisiva da intuição. O que cada indivíduo considera como real não é a manifestação auto-evidente da verdade, mas é, fundamentalmente, a construção da verdade através de um processo de reconhecimento e associação. Se a percepção e, consequentemente, a investigação científica pudessem prescindir dos atos de reconhecimento, de modo que o cientista pudesse ser mero observador neutro dos fatos, é possível que as descobertas científicas se reduzissem a pura catalogação de acontecimentos, porquanto o jogo criativo de associações de semelhanças ocultas científico seria negado.

Bronowski descreve, assim, três etapas para as descobertas: a existência dos dados separados dos sentidos, o jogo das associações daqueles por intermédio destes e a atribuição de símbolos ou nomes à conjectura resultante. Essa terceira etapa é a que permite a abstração, trabalhar com o conceito quando a experiência que ele manifesta não ocorre. A veracidade dos resultados dessas etapas de conhecimento é extraída pela experiência posterior cotejada com a conjectura final. Se os dois não corresponderem é porque a segunda fase falhou. O problema, portanto, não está nos dados, mas nas associações criadas entre eles. Não apenas a lógica dedutiva é utilizada pela ciência. A experiência tem papel determinante também. Isso porque basta um equívoco em uma qualquer premissa para que a construção científica desmorone.

Disso, preliminarmente, é possível excluir de qualquer noção de verdade a evidência por ela mesma e a validade universal dos conceitos. Estes, conforma as três fases mencionadas, são sempre construídos com base na experiência e representam a etapa final do trabalho. A auto-evidência não é possível porque tudo o que julgamos evidente é uma conjugação dos dados da experiência com nossa interpretação deles, que é sempre socioconstruída. Esse ponto de vista pode ser expandido pela leitura que Bronowski faz dos positivistas lógicos. Estes nutrem profunda desconfiança pelos conceitos e pelos valores, o que se deve à grande tendência de universalização de ambos. Embora a ciência moderna tenha partido de sistemas dedutivos (e a ética medieval de algo parecido), não pode a eles ser reduzida. A concepção de verdade que impulsionou a ciência partiu da crença de que aquela poderia ser alcançada por esta, por métodos precisos e rigorosos. Isso, conforme exposto, não é possível. Toda verdade é apenas aproximada porque toda certeza nunca é plenamente deduzida. É, acima de tudo, criada.

A imutabilidade aparente dos conceitos éticos frente à mutabilidade dos conceitos científicos, confrontados inevitavelmente com a experiência, conduzem a uma separação entre ambos. Eis um ponto de ruptura da responsabilidade moral do cientista pelo conhecimento científico. Eis uma justificativa para ele se sentir desobrigado. Bronowski, explicitamente contrário a isso, propugna implicitamente a conjunção entre ciência e ética, conforme é possível extrair do seguinte trecho:

Tudo é simples, uma vez que se veja que a ciência é igualmente um sistema de conceitos: compete à experiência pesquisar e corrigir o conceito. A pesquisa é: O conceito funcionará? dará uma unidade natural à experiência dos homens? o conceito torna a vida ordenada, não por decreto, mas de fato? (1979, p. 47- 48)

Se é necessário avaliar a capacidade do conceito de tornar a vida ordenada, uma vez que se perceba que a sua mera imposição nada significa, e uma vez que ele realmente se remeta à ordenação da vida, é necessária a emergência de um fundo ético que o oriente. Disso decorre a impossibilidade sustentada desde o início do texto de se separar conhecimento puro de suas aplicações práticas. Isso é que, no fundo, impede a separação entre técnica e ética. Esse resultado tem o mesmo sentido do texto de Popper que estudamos em nossa reunião passada (1996), e talvez vá além dele: Popper sustentava que o cientista não pode desviar-se da responsabilidade moral pelos resultados de sua pesquisa porque todo conhecimento puro pode se tornar aplicado (1996, p. 153). Bronowski sustenta que o conceito de ciência abrange não apenas o conhecimento puro, visto que este sempre se construiu com base em inclinações de seu tempo e sempre versou sobre o domínio da natureza.

No terceiro capítulo Bronowksi parte de suas conclusões nos capítulos anteriores para examinar os valores que norteiam a ciência e que orientam a civilização ocidental. Da leitura do capítulo 2, como demonstrei, o autor não acredita que conceitos (logo, também, valores) sejam inatos. Sua análise no terceiro capítulo é iniciada através da observação de que Bronowski não alimenta os típicos receios dos que querem crer na essência dos conceitos e dos valores (ou, nas precisas categorias de Kant, dos que acreditam que conceitos e valores são juízos analíticos a priori). Esses receios podem ser manifestar como, por exemplo, no medo de que, uma vez aceito que todos valores são criação, e não absolutos, se descumpridos não implicariam sanção se não houvesse algum mecanismo sancionatório social. Assim, teme-se que pessoas que detenham poder e conhecimento cheguem á conclusão de que tudo é permitido. Esse temor se expande também ara as ciências sociais.

Brownoski refuta esse tipo de receio por acreditar que ele não sobrevive a um exame histórico: “Duvido que esta sombria opinião resista à luz da História” (1979, p. 60). Não vejo muita força nos argumentos que ele utiliza para sustentar essa opinião. O cerne de sua opinião acaba sustentado, nas palavras de Robert Dahl, pela convicção de que a posição daqueles receosos “contém o toque de cinismo vivido, para indivíduos possuidores de fortes traços de idealismo frustrado” (DAHL, 1970, p. 90).

O autor polaco afirma, em estrita correspondência como a tese do livro analisado, que há um nexo social estabelecido pelo cumprimento de regras aceitas socialmente. Se a maioria das pessoas as desrespeitassem, como temem os receosos, nenhuma sociedade se sustentaria. Assim, uma sociedade sempre envolve, no fundo, uma tensão entre os deveres dos homens (que permitem que laços sociais permaneçam) e a liberdade individual. É nessa tensão, e não antes dela, que os valores surgem, e é ela que os torna “profundos e difíceis” (BRONOWSKI, 1979, p. 61). Para ele, o princípio que forma um elo social verdadeiro é o princípio da autenticidade, que corresponde não ao fato de sabermos se outro indivíduo age de forma honesta ou leal, mas ao fato de ser isso o que esperamos das ações dele. Na comunidade científica esse princípio é fundamental, e a partir dele Bronowski elaborou um axioma social: “DEVEMOS atuar de tal modo que aquilo que É verdadeiro possa ser verificado como verdadeiro” (1979, p. 64). Só há verdade possível de ser enunciada na extensão de sua possibilidade de verificação.

A partir disso, o autor busca identificar na comunidade científica o que confere a ela tanta força, o que a mantém tão coesa e o que a fez atravessar séculos intacta. Isso se deve, para ele, aos valores das ciências, construídos nas práticas delas, e não na moral individual de seus membros. Como já visto, a ciência cria conceitos explorando fatos. Essa tarefa criativa exige independência de pensamento, transparência para a análise dos resultados e a liberdade para se discordar de um posto de vista sedimentado. Disso que “a discordância [...] é a marca de liberdade, tal como a originalidade é a marca da independência de espírito” (1979, p. 67). Assim, a comunidade científica tem que assegurar “investigação livre, pensamento livre, linguagem livre, tolerância (1979, p. 67), do que se percebe que essa comunidade tem que ser democrática. A ciência, de tudo o que até agora foi exposto, não é neutra. Ela assume uma posição ética que é sua condição de existência. O que fez com a sociedade científica tenha permanecido por tanto tempo, e hoje com mais força, é a flexibilidade que seus valores a propiciam. A tarefa dela não se esgota na busca do conhecimento. Uma vez que a ciência, conforme a definição de Bronowski no primeiro capítulo, não se esgota no conhecimento, mas abrange também os usos dele, essa comunidade tem que se fundar em um compromisso entre os homens. “Deve encorajar o cientista individual a ser independente e o corpo de cientistas a ser tolerante (1979, p. 74).

Esse compromisso da sociedade de cientistas acaba a tornando até mais importante que suas descobertas. Disso, o autor conclui que não é a sociedade científica a culpada pela catástrofe nuclear; os valores daquela são opostos a esta. “A verdade é daqueles que apelam para outros valores, para além daqueles valores humanos imaginativo que a ciência desenvolveu” (1979, p. 78). Bronowski propugna a incorporação dos valores da comunidade científica pela sociedade em geral. ‘A vergonha é nossa, se não fazemos com que a ciência faça parte do nosso mundo, tanto intelectual como fisicamente, de modo que possamos, finalmente, atentar nestas metades do mundo segundo os mesmos valores (1979, p. 78-79). Assim, o autor atinge os objetivos de sua tese central na página 12: demonstra o vínculo que une a sociedade e mostra o papel da ciência “nas regras de conduta que têm ainda de ser aperfeiçoadas” (1979, p. 12).

REFERÊNCIAS

BRONOWSKI, Jacob. As Origens do Conhecimento e da Imaginação. Tradução de Maria Julieta de A. C. P. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.

DAHL, Robert. Uma crítica ao modelo de alite dirigente. In:______. Sociologia política. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.


Vìdeo do Bronowski no YouTube:



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